quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Encontro com Camões

Estava a comer um gelado
Quando vi do outro lado,
Encostado à mesa de bilhar,
O grande poeta Camões.
«Olá, o teu olho hoje valia milhões!»
Disse-lhe a provocar.
E ele começou a recitar:
«Ó alma gentil que te partiste
E espalhaste os cacos por toda a parte
Vem de pá e vassoura em riste,
E apanha isto antes que seja tarde
De caminho traz-me de maçã uma tarte,
Que meu estômago com fome arde»
Os presentes no café
Levantaram-se e de pé
Aplaudiram fortemente,
Muito emocionadamente.
Fui ter com ele, o Luíz,
E apertei-lhe a mão.
Tinha um pingo no nariz,
E nas calças faltava-lhe um botão.
Com uma palmada nas costas,
Saltou uma camada de poeira,
Vinha toda às postas
A precisar de uma banheira.
Vendo tanto pó no ar
Vieram homens diligentes
Querendo negociar
A venda de estupefacientes.
Camões disse então:
«As armas dos barões amendrontados
Que da oriental Expo-98
Por mares nunca dantes navegados
Vieram tomar um café e um biscoito
E em carros e motas comprados a prestações
Passaram ainda além do Parque das Nações
E ainda mesmo antes de ir para a cama
Gastámos todo o dinheiro no centro Vasco da Gama»
As pessoas de novo aplaudiram,
E os diligentes sairam.
E Camões agradecia.
E Camões sorria.
Três pessoas cairam desmaiadas,
Desfaleceram intoxicadas,
Porém sem mais danos,
Com aquele hálíto de centenas de anos.
Entraram dois homens pequenos,
Inquietos e nada serenos.
Vinham com precisão de pielas.
Não deram pelo escritor
E pediram um prato de moelas.
A empregada no corredor
Trazia-lhes a comida
E ainda ela não estava servida,
Já eles em tom desesperado
Pediam mais bebida...
Camões acercou-se e educado
Pediu solidariedade.
«Camões, eu sou do povo,
Eu sei que és grande escritor
Mas para dizer a verdade,
Já demos para o Kosovo,
Depois demos para Timor.
Desculpa lá ó Camões
Mas daqui só levas uns tostões.»
Camões, de olhos lacrimejantes,
Falou, pelo meio de gritos lancinantes:
«O poeta é um fingidor
E finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente»
Aí, eu disse-lhe então:
Sim, sim, o poeta é um aldrabão
Se tu és o Camões,
Eu sou um meloeiro,
No Verão dou melões
E no Inverno dou meloa.
Tu és um batoteiro
Esse verso é do Pessoa.
«Perdoa-me, por favor.
Passei muito tempo enterrado
E para ficar actualizado
Começei a ler esse senhor...
Perdoem-me... vou indo...»
E lá foi saindo
Com as páginas dos Lusíadas caindo...
Caindo...
Caindo...

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